quarta-feira, 25 de outubro de 2017

Ironia para quem precisa


Pobre do espírito que não compreende a ironia. Talvez a figura de linguagem mais sofisticada, pois diz o oposto do que quer dizer, contrariando a lógica do pensamento cartesiano, o que exige certo refino intelectual do alocutário para ser decodificado. Algo que pode vir a ser um problema num ambiente de mentalidades embrutecidas como as redes sociais, principalmente, quando a ironia vem manifestada na forma escrita.

Verbalmente, a ironia tende a seguir acompanhada pelo tom da fala e, ou, pelos gestos do emissor, o que auxilia no processo de decodificação por parte do receptor. Já na linguagem escrita, o grau de abstração mental exigido no processo é maior, pois requer uma boa capacidade em interpretação de textos. Porém, o que não falta no mundo é gente burra ou mal intencionada dispostas a distorcer contextos para fins de satisfação do próprio ego. A estocada irônica não atinge ouvidos parvos.

Particularmente, sou do voto de que se criem um sinal de pontuação para se especificar a ironia em textos, tal como se faz com a interrogação e a exclamação. Possa ser que esse sinal gráfico não evite por completo as querelas em questões de ambivalência em interpretações textuais, mas, com certeza, daria certa proteção jurídica para o emissor da ironia nos tribunais de linchamento digital, ao servir como atestado de sua intenção irônica. 

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Infelizmente, uma triste notícia: Zeca Bronha morreu. Andando na praia, atingido por um raio. Tinha resolvido tirar uns momentos de folga para tomar um ar, sentir os pés na areia molhada e curtir um pouco a natureza, caminhando à beira-mar enquanto trocava inutilidades pelo whatsapp com os amigos. O tempo estava nublado e um raio o atingiu. Ao contrário do que ele imaginava, não ganhou superpoderes. Caiu fulminado no chão. Bem, na verdade ele ainda está em coma induzido, vegetando com ajuda de aparelhos, aliás, situação de vida não muito diferente da anterior, antes de ser atingido pelo raio.

Seleção natural da tecnologia


No excelente livro Criatividade S.A., Ed Catmull, presidente da Pixar e Walt Disney Animation Studios, conta um pouco sobre a trajetória de sua vida profissional, o surgimento da Pixar, e as dificuldades enfrentadas pela empresa na busca de sua consolidação. Ele apresenta o desenvolvimento de seu modelo mental de gestão, apontando as lições que ele adquiriu ao longo de sua vivência e experiência.

Há uma passagem interessante sobre sua experiência na Lucasfilms, produtora de George Lucas, em que, liderando a equipe de computação gráfica, ele havia desenvolvido um programa para a edição de filmes no computador; era meados dos anos 80. No dia do teste, porém, nenhum editor da produtora quis participar. Eles não queriam saber de tal programa.

A percepção de Ed Catmull sobre aquilo foi a de que os editores, plenamente satisfeitos com o processo ao qual já dominavam, não queriam saber de mudanças que abalassem sua zona de conforto. Um dos maiores empecilhos para o progresso da tecnologia seria, portanto, a resistência e o desinteresse daqueles que não queriam que ela progredisse.


De fato, a tecnologia muitas vezes parece avançar num ritmo mais acelerado do que o intelecto, ou vontade, da grande massa humana é capaz de assimilar, ou aceitar. O ser humano gosta de conforto, e manter o domínio pacífico sobre algo relevante que lhe seja proveitoso é confortável. Mudanças bruscas tendem a gerar momentos de estranhezas à percepção humana, podendo essa experiência ser positiva e estimulante para alguns, mas desconfortável para outros, creio eu, que para a maioria das pessoas. Se o novo não surge para suprir uma necessidade real e patente das pessoas, ele precisa vir se instalando aos poucos, à medida que cativa o interesse e o desejo alheio, muitas vezes, com o marketing anunciando e divulgando sua presença. Se o novo for bom na proporção de vantagens e confortos, acaba se consolidando naturalmente.

Os primeiros impressos produzidos por Gutenberg buscavam se assemelhar aos manuscritos feitos naquela época, não por questão de praticidade técnica ou capacidade tecnológica, mas sim, por conformação mercadológica. Os manuscritos já eram um produto culturalmente estabelecido, e seu valor era alto, em todos os sentidos. Era um objeto para poucos e que dava status a quem os possuía. Certamente, o desenvolvimento de um processo mecânico para reprodução de páginas era uma busca que interessava muito mais aos “editores” do que aos consumidores. Estes, em princípio, estavam satisfeitos. Mudanças bruscas demais nas características dos livros poderiam causar estranhamentos e afetar negativamente o interesse dos consumidores pelo produto. À medida que a tipografia foi se desenvolvendo, as vantagens técnicas possibilitadas pelo novo processo começaram a se sobressair e se firmar no mercado, estabelecendo um novo paradigma cultural sobre o entendimento do livro como objeto.

E o progresso tecnológico continuou seguindo... Atualmente, na maioria dos livros digitais existe uma função que emula o passar das páginas, não por que essa seja uma necessidade tecnológica...


Outro exemplo, o teclado do computador, cuja disposição das teclas segue a mesma das máquinas de escrever desde o século XIX. Embora existam alguns diferentes padrões no mercado, o QWERTY, patenteado por Christopher Sholes em 1868, praticamente, é o universal para o alfabeto latino. Segundo se diz, embora haja quem conteste, tal disposição de teclas nesse formato de teclado teve por finalidade evitar que os martelos das máquinas de escrever se enganchassem ao se digitar muito rapidamente. Ora, num aparelho mecânico como a máquina de escrever, isso faz todo o sentido, mas em um computador onde tal problema não existe, não. No entanto, continuamos a usar esse formato de teclado totalmente contraintuitivo.

Na internet há textos que discorrem mais a fundo sobre o tema, no geral, apontam como razão, uma conformada convenção mercadológica imposta pelas principais fabricantes de máquinas de escrever ainda no século XIX. Aproveito para lembrar que não sou nenhum especialista no assunto, tá? Sou apenas um “especulista”.

Nunca digitei num teclado diferente do QWERTY, mas imagino que seja uma experiência esquisita e desconfortável a princípio, porém, se por qualquer motivo eu fosse obrigado a utilizar um desses outros formatos, gosto de pensar que eu seria capaz de assimilar a nova lógica com o devido tempo de uso. Apesar do processo de adaptação ser desconfortável, estar bem adaptado às novas realidades situacionais gera conforto. Contudo, ufa, ainda bem que não sou obrigado.


Lembro que em 1998 eu estagiava numa repartição pública em Salvador. Lá, havia uma secretária que datilografava numa grande máquina de escrever eletrônica, a melhor do mercado até então, lembro-me dela se gabando. O teclado era extremamente sensível; e certa vez, por curiosidade pedi para digitar na máquina. Um leve toque na tecla; e a letra partia em disparada, repetidas vezes na folha. Depois de um breve ajuste mental-corporal, ok, consegui me sintonizar com a máquina. A secretária, por sua vez, parecia ter desenvolvido uma simbiose mágica com o aparelho, à la as criaturas do filme Avatar. E eu achava incrível observar a desenvoltura com que ela digitava.

Era exímia, rápida e desprendida. Devia ser algo comum daquele meio profissional, mas como eu não fazia parte daquele meio, para mim, era algo fenomenal. Ela digitava sem parar enquanto conversava e interagia com outras pessoas ao redor. Tirava sarro ou trocava provocações com os colegas, sempre digitando, quase sem olhar para folha, muito menos para o teclado. Digitava com uma mão, enquanto, gesticulando com a outra, se virava para trás na cadeira ao tratar de algum assunto, qualquer que fosse, com alguém. Já cheguei a vê-la digitando enquanto falava acaloradamente ao telefone. Para mim, ela era a Bruce Lee da máquina de escrever.

No ano seguinte tiraram a máquina de escrever da repartição e colocaram um computador. Windows 98, com um negócio chamado mouse... Meu Deus, pense em alguém sofrendo, era essa mulher diante do computador tentando mexer nele. Desanimada, triste, ficava repetindo baixinho: “não é a mesma coisa, não é a mesma coisa”...

sábado, 21 de outubro de 2017

"Desaurora" do homem


Quando comecei a escrever este blog anos atrás o mundo era outro. Não havia essa profusão de chorume transbordando nas redes sociais; tampouco, as chorumelas da rede tinham a capacidade de me impactar de forma significativa na vida real. Porém, algo mudou e passei a perceber que uma simples lida no feed de notícias do facebook tem o poder de azedar minha tarde. Se houvesse um plebiscito a respeito, eu votaria pelo fim do facebook no Brasil. Pronto! Cabô! Pelo fim dessa patifaria toda aí!

Ok, ok... Radicalismo não tem nada a ver. O facebook não tem culpa pela profusão de merda por ele disseminada, embora os algoritmos tenham lá sua parcela de culpa sim, mas, enfim, tal como uma arma, ou qualquer outra ferramenta, ele está apenas a serviço de quem o usa. Blablablá é verdade. O facebook é apenas um espelho turvo da sociedade, que reflete muitos de seus cidadãos sem polidez.


Em regiões onde o respeito pelo estado de direito é mínimo e a incidência da violência é alta e banalizada, pessoas que buscam se resguardar tendem a ser mais moderadas no tratamento uma com as outras, pois qualquer palavra fora do tom ou olhar mal interpretado pode servir de estopim para a deflagração de atos de hostilidades e agressões. O medo de tomar porrada ou levar meia dúzia de tiro na cara faz as pessoas serem mais educadas com as outras.

O facebook ameniza esse risco, e é justamente por causa dessa sensação de segurança que a bolha virtual nos proporciona que muita gente se sente à vontade para se agigantar de forma monstruosa na frente do computador, esbravejando, xingando e ofendendo quem quer que seja, de maneira que jamais teriam coragem de fazer presencialmente. O facebook serve de púlpito para os covardes e patifes.


O pior é que a ignorância é tanta, que muita gente profere os mais abjetos comentários e nem sequer se dão conta de sua abjeção. Não enxergam como tal. O narcisismo egoico é tanto, que, para essas pessoas, o que pensam, falam ou sentem será sempre o certo e verdadeiro, sendo seu direito expressá-lo como bem entender. Não questionam a legitimidade ou conveniência de suas declarações; se acreditam, logo, só pode ser verdade. Veem suas falhas de caráter como traços de sua personalidade, linda e maravilhosa; e quem discorda, sinto muito, só pode ser um pobre coitado idiota. O senso crítico nas redes sociais é que nem o ar na estratosfera, bastante rarefeito.


Eles não percebem os imbecis que são. São cognitivamente imaturos, não aprenderam a desenvolver plenamente o pensamento abstrato e o raciocínio-hipotético-dedutivo em meio ou após a adolescência. Estacionaram em algum estágio emocional juvenil e lá permaneceram.


Às vezes, a sensação que tenho é a de que o mundo foi tomado por esses seres. Seres que diante da dificuldade de lidar com as complexas variáveis de um mundo pluricultural, se apegam às suas verdades binárias e maniqueístas, e partem para atacar os espantalhos que os assombram, sendo esses espantalhos, qualquer coisa da qual eles não tenham afinidade. E esses seres surgem tanto da direita, quanto da esquerda.

Muitas coisas mudaram na dinâmica social brasileira nos últimos anos, embora a essência permaneça exatamente a mesma. Nada, de fato, surpreendente, pelo contrário, extremamente previsível para não dizer preditivo! Ainda assim, complexo e conturbado. O nível de esculhambação no país é tão absurdo que o Brasil virou uma caricatura de si mesmo.